O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CR, art. 127; LOMP, art. 1º; e, LC n. 75/1993, art. 1º). Por isso, todos os órgãos do Ministério Público têm a obrigação deontológica de observar os limites legais da persecução penal, na medida em que a condenação criminal de um ser humano terá legitimidade constitucional, apenas, e tão somente, quando respeitado o princípio do devido processo legal, observados a ampla defesa e o contraditório (CR, art. 5º, LIV e LV).
Entre pessoas eticamente comprometidas com a alteridade, é incontroverso que todo acusado tem direito a um julgamento em conformidade com a ordem jurídica, em bases democráticas, a fim de ser evitada uma condenação injusta. O acusado no processo penal continua sendo um membro da sociedade, e constituiria uma contradição em termos admitir que o Ministério Público, defensor que é dos direitos da sociedade, pudesse buscar uma condenação criminal ocultando provas eventualmente favoráveis àquele.
Muito embora existam críticas em sentido contrário, além de responsável pela promoção da ação penal pública (CR, art. 129, I; CP, art. 100, §1º; CPP, art. 257, I), o Ministério Público é custos legis, ou seja, custodia a lei, e, por isso, tem a obrigação de fiscalizar a execução da lei (CPP, art. 257, II), razão pela qual é incabível qualquer manobra desleal no curso dos processos criminais, notadamente naqueles em que a dignidade e a liberdade de uma pessoa possam ser gravemente atingidas.
Trata-se do dever de imparcialidade que sustenta a atuação do Ministério Público na matriz de um processo penal verdadeiramente democrático e preocupado com as garantias de toda a pessoa: acusada ou vítima. Como ensina Eugênio Pacelli de Oliveira, “não é por ser o titular da ação penal pública, nem por estar a ela obrigado, que o parquet deve necessariamente oferecer a denúncia, nem, estando esta já oferecida, pugnar pela condenação do réu, em quaisquer circunstâncias […] ao Estado (e, aqui, ao Ministério Público) deve interessar, na mesma medida, tanto a condenação do culpado quando a absolvição do inocente. Essa é a verdadeira leitura a ser feita da norma do art. 257 do CPP” (OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 400-402).
Tudo isso já é o bastante para que – em respeito ao Estado Democrático de Direito e à dignidade humana – o Ministério Público jamais possa admitir condutas de seus órgãos dirigidas à ocultação de provas que sejam favoráveis a qualquer ser humano que figure na condição de acusado dentro do processo penal. Ainda que se trate de prova que afaste ou reduza a responsabilidade penal do acusado, é dever do Ministério Público (função essencial à Justiça) a apresentação de todas as provas. Caso isso venha a acontecer no curso da investigação preliminar ou da instrução processual, a eventual condenação ou os eventuais acordos (de não persecução penal ou de colaboração premiada) firmados serão nulos.
Essa obrigação deontológica do Ministério Público encontra plena semelhança com a denominada “doutrina Brady”, desenvolvida a partir de julgamento paradigmático da Suprema Corte dos EUA, que consagrou o entendimento de que a ocultação pelo Ministério Público de evidências que são relevantes para a determinação – ou não – da culpa ou punição de um réu viola o direito constitucional ao devido processo legal (Brady v. Maryland, 373 U.S. 83 1963). É um dever constitucional de todos os órgãos do Ministério Público compartilhar as provas que possam beneficiar o acusado, independentemente de prévio requerimento dele nesse sentido.
A importância desse dever de lealdade é tamanha que, o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (Decreto n. 4.388, de 25 de setembro de 2002), ao tratar das funções e poderes do Procurador em matéria de inquérito, determina que ele “deverá, a fim de estabelecer a verdade dos fatos, alargar o inquérito a todos os fatos e provas pertinentes para a determinação da responsabilidade criminal, e, para esse efeito, investigar, de igual modo, as circunstâncias que interessam quer à acusação, quer à defesa” (art. 54.1).
Então, para além da nulidade de condenações ou acordos afetados pela ocultação intencional de provas favoráveis à defesa de réus no processo penal, seria importante a apuração das responsabilidades administrativa, civil e criminal daqueles que deixam de respeitar aquilo que está em nossa Constituição, no nosso Código de Processo Penal, e, ainda, nas leis que estruturam as carreiras do Ministério Público na República Federativa do Brasil.