RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. INVASÃO DOMICILIAR E DO LOCAL DE TRABALHO EFETUADA POR POLICIAIS MILITARES SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA CONCLUIR PELA EXISTÊNCIA DE SITUAÇÃO DE FLAGRANTE. ABORDAGEM DO PACIENTE NA RUA, SEGUIDA DE REVISTA PESSOAL NA QUAL NADA DE ILÍCITO FOI ENCONTRADO EM SUA POSSE. CONDUÇÃO SUBSEQUENTE DO SUSPEITO A SEU LOCAL DE TRABALHO E À SUA RESIDÊNCIA, NOS QUAIS FORAM ENCONTRADOS ENTORPECENTES. NULIDADE DAS PROVAS OBTIDAS NA BUSCA E APREENSÃO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. RECURSO PROVIDO.
1. O Supremo Tribunal Federal definiu, em repercussão geral, que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo – a qualquer hora do dia, inclusive durante o período noturno – quando amparado em fundadas razões, devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem estar ocorrendo, no interior da casa, situação de flagrante delito (RE n. 603.616/RO, Rel. Ministro Gilmar Mendes) DJe 8/10/2010).
2. A Corte Suprema assentou, também, que “o conceito de ‘casa’, para o fim da proteção jurídico-constitucional a que se refere o art. 5º, XI, da Lei Fundamental, reveste-se de caráter amplo (HC 82.788/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, 2ª Turma do STF, julgado em 12/04/2005, DJe de 02/06/2006; RE 251.445/GO, Rel. Min. CELSO DE MELLO, decisão monocrática publicada no DJ de 03/08/2000), pois compreende, na abrangência de sua designação tutelar, (a) qualquer compartimento habitado, (b) qualquer aposento ocupado de habitação coletiva e (c) qualquer compartimento privado não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade” (RHC 90.376/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, 2ª Turma do STF, julgado em 03/04/2007, DJe de 18/05/2007).
3. Nessa linha de raciocínio, o ingresso regular em estabelecimentos protegidos pela garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio depende, para sua validade e regularidade, da existência de fundadas razões (justa causa) que sinalizem para a possibilidade de mitigação do direito fundamental em questão. É dizer, somente quando o contexto fático anterior à invasão permitir a conclusão acerca da ocorrência de crime no interior da residência é que se mostra possível sacrificar o direito à inviolabilidade do domicílio.
4. “A mera denúncia anônima, desacompanhada de outros elementos preliminares indicativos de crime, não legitima o ingresso de policiais no domicílio indicado, estando, ausente, assim, nessas situações, justa causa para a medida.” (HC 512.418/RJ, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 26/11/2019, DJe 03/12/2019.)
5. Somente a informação de que o paciente tivera envolvimento anterior com tráfico de drogas não autoriza a autoridade policial a conduzi-lo até seu local de trabalho e sua residência, locais protegidos pela garantia constitucional do art. 5º, IX, da CF, para ali efetuar busca, sem prévia autorização judicial e sem seu consentimento, diante da inexistência de fundamento suficiente para levar à conclusão de que, naqueles locais, estava sendo cometido algum tipo de delito, permanente ou não. Precedente: (HC 527.161/RS, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 26/11/2019, DJe 29/11/2019).
6. No caso concreto, a leitura dos Termos de Depoimento dos condutores do paciente, na ocasião do flagrante, revela que, após terem abordado e revistado o paciente na rua por terem conhecimento de seu envolvimento anterior com o tráfico, e com ele encontrarem apenas T$ 35,00 e um molho de chaves, sem qualquer indício ou investigação prévia sobre local em que poderia haver droga, o paciente foi por eles conduzido primeiro a seu local de trabalho (uma barbearia), onde foram encontrados 14 (quatorze) “eppendorfs” contendo substância semelhante a cocaína, e depois à sua residência, na qual foram descobertos saquinhos plásticos, típicos de embalar drogas, dois comprimidos e, no quarto do autuado, uma balança de precisão.
7. Reconhecida a ilegalidade da entrada da autoridade policial no local de trabalho e no domicílio do paciente sem seu consentimento e sem prévia autorização judicial, a prova colhida na ocasião deve ser considerada ilícita.
8. Já tendo havido condenação do paciente no 1º grau de jurisdição, deve a sentença ser anulada, absolvendo-se o paciente, com fulcro no art. 386, II, do Código de Processo Penal.
9. Recurso provido.
(STJ, RHC n. 126.092/SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, j. 23/06/2020, DJe 30/06/2020)